O uso de agrotóxicos em lavouras em todo o país revela um diagnóstico triste e desolador. Trabalhadores sem instrução são expostos ao produto, sem receber treinamento e, raramente, utilizando os equipamentos de proteção individual. O resultado é o aumento de casos de intoxicações a cada ano, bem como a descoberta de casos antigos que acabam sendo rastreados nos postos da Previdência e Centros de Referência em Saúde do Trabalhador.
Foi a partir de um seminário realizado no Cerrado Piauiense que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores Rurais do Piauí (Fetag) souberam dos casos de intoxicação por agrotóxicos na região. Isso porque, com as informações do seminário, os trabalhadores rurais puderam identificar, em si próprios ou em trabalhadores conhecidos, os sintomas descritos pelos palestrantes. Assim, os casos de intoxicação começaram a surgir, revelando números que assustam o representante da Fetag, Anfrísio de Moura Neto.
Ele conta que foram relatadas mais de 50 internações em 2005 e 18 mortes associadas, segundo a instituição, ao uso indevido de agrotóxicos desde que o estado começou o plantio da soja, há menos de uma década. "Numa safra coloca-se três a quatro tipos de 'veneno' e os trabalhadores não estão preparados nem informados dos riscos que estão correndo", relata Anfrísio.
A descoberta dos casos motivou a realização de uma audiência pública em Brasília, em novembro do ano passado, para discutir o tema. Uma das deliberações do encontro foi a criação de uma força tarefa que reúne representantes dos trabalhadores (sindicatos, CREA, Contag, Fetag) e do governo (Delegacia Regional do Trabalho, Ibama, Ministério Público). O grupo investiga as causas das intoxicações e busca provas que não precisem de comprovação médica. Eles procuram outras provas porque, segundo Anfrísio, as perícias foram manipuladas e os laudos das mortes dos agricultores não mencionavam a intoxicação. Os trabalhadores tinham sintomas semelhantes: inchaços nas mãos e nos pés, mudanças na pele, tontura, surgimento de alergias e comportamento mais agitado, com perda recente da memória, em alguns casos.
Apesar de não ter sido feito para o nosso clima e precisar ser personalizado, o Equipamento de Proteção Individual (EPI) é a única forma de proteger o trabalhador"
O sindicalista reclama que, mesmo com todos esses sintomas, os casos não são reconhecidos pela Justiça como prova nos processos. "Se pudéssemos contar com a Justiça, seria ótimo, mas dependemos da interpretação das provas, o que nem sempre beneficia o trabalhador" . O juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Sebastião de Oliveira, explica que o julgamento não pode ser feito com base, somente, na alegação do trabalhador. "O sintoma por si só não chega a caracterizar uma prova. Pode, em alguns casos, gerar uma presunção. O juiz precisa estar convencido, a partir de provas realizadas por um Perito, Médico do Trabalho, que a doença foi causada pelo agrotóxico e que houve um comportamento negligente do empregador", explicou. "Pode ser ainda que a atividade da empresa tenha um risco acentuado o que gera a responsabilidade independentemente de demonstração de culpa do empregador".
"A Justiça deve respeitar o princípio do contraditório e o direito das partes de se defenderem, mas sobretudo precisa estar convencida que há uma relação entre a doença e o trabalho. Algumas doenças podem se confundir com outras não causadas pela atividade laboral, por isso é necessária a comprovação do nexo causal e a demonstração do prejuízo causado ao trabalhador, que pode ser a invalidez ou mesmo a redução da capacidade laborativa", disse o magistrado. Na sua experiência como juiz do trabalho, Sebastião acredita que os trabalhadores deveriam estar melhor assessorados nos processos de indenização. "Seria muito interessante se os sindicatos oferecessem, em suas estruturas funcionais, a assessoria de médicos especializados que pudessem auxiliar na comprovação do nexo de causalidade entre o trabalho e a doença incapacitante" , pondera o magistrado.
No campo e na cidade - Engana-se quem pensa que o problema atinge somente os trabalhadores na lavoura. Os revendedores também sofrem os danos da exposição aos agrotóxicos, é o que revela a pesquisa realizada pela médica Andréa Amoras, na sua dissertação de mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília. Ela considerou as intoxicações de 350 trabalhadores atendidos na Diretoria de Saúde do Trabalhador do Distrito Federal. Desses, 188 foram expostos a agrotóxicos.
Das várias formas de exposição identificadas (na indústria, no campo e na cidade), chamou atenção o relato vivenciado por um grupo de funcionários de uma distribuidora de produtos agropecuários. Depois de um período de investigação da origem do problema, descobriu-se que eles estavam sofrendo os danos da exposição ao repartir o produto ou ao descarregá-lo do caminhão.
"Os vendedores de agrotóxicos muitas vezes fracionam o produto, têm contato direto com ele e acabam se intoxicando" , conta a pesquisadora. Ela comenta o não-uso dos equipamentos de proteção individual (EPI) pela maior parte dos entrevistados. Mesmo aqueles que recebiam do empregador o equipamento se recusavam a utilizá-lo. No caso dos trabalhadores do Governo do Distrito Federal, que receberam os EPI, 80% não usaram por achar que incomoda ou que não é necessário.
Feito sob medida - "Os EPI não foram feitos para nosso clima. É recomendado que se use nas horas menos quentes do dia para evitar o desconforto para o trabalhador. Além disso, deve ser um produto personalizado. Quem usa barba, óculos ou tem um rosto diferente do tamanho da máscara, por exemplo, não deve usar o mesmo equipamento de quem não tem essas características" , explica a pesquisadora. "Hoje em dia existem materiais menos quentes, mas ainda assim os equipamentos são inviáveis para o trabalhador. Além disso, os EPI têm um custo muito alto para a grande maioria dos agricultores" , diz. A médica sanitarista defende que, mesmo muito incômodos, os equipamentos são a única forma de proteger o trabalhador das contaminações.
O EPI tem custo alto, mas é dever do empregador oferecer o equipamento e treinar o trabalhador, conforme determina a Norma Regulamentadora (NR) 31 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A maioria dos trabalhadores não usa o equipamento e faz contato direto com o agrotóxico pelas mãos, respirando ou até mesmo ingerindo o produto ao manuseá-lo ou borrifá-lo na plantação.
João de Almeida Sampaio Filho, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), entidade que representa os agricultores, sabe do papel do empregador e acredita que é uma questão de tempo para que o setor esteja devidamente adaptado às regras da NR 31. "É um processo de mudança e o agricultor está se preparando. Nós da SRB fazemos um trabalho de conscientizaçã o, mas temos dificuldade de convencer o trabalhador a usar o EPI, principalmente aqueles que têm baixa escolaridade" , esclarece. O alto custo do produto não é motivo para o EPI não ser usado na lavoura, defende Sampaio. A questão, acredita, é o conhecimento da norma. "Muitos agricultores ainda não a conhecem e a nossa preocupação é que a sua aplicação venha a se tornar um impeditivo ou que vá prejudicar o produtor. Acho que os prazos de adaptação devem ser considerados" .
Diagnóstico - Os sintomas neurológicos são os campeões nos efeitos colaterais causados aos trabalhadores expostos a agrotóxicos e entrevistados na pesquisa. Dor de cabeça, tontura e dores nas extremidades corresponderam a 79% das queixas. Já os danos dermatológicos, como prurido, pápulas (caroços) e queimaduras químicas ocupam o segundo lugar na lista, relatados em 31% dos pacientes. Também foram comunicadas alterações nos aparelhos respiratório e cardiovascular e no comportamento psicossocial.
O médico do trabalho e assessor técnico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Afrânio Gomes, reforça outro dado preocupante dessa epidemia silenciosa. "O problema é ainda mais grave se considerarmos que a causa de intoxicação que mais mata é o agrotóxico (mais que medicamentos, animais peçonhentos e ingestão de produtos de limpeza) e que não aparece assim nas notificações, inclusive do INSS. Lá são registrados como morte por hepatite, problemas neurológicos, câncer. O paciente chega no INSS empurrado pela assistência médica, depois de muitos dias de atestado. É raro chegar com diagnóstico estabilizado" , esclarece.
Por terem sintomas semelhantes aos de outras doenças, as intoxicações crônicas ( de longo prazo, independente do quanto a pessoa foi exposta) são mais difíceis de serem diagnosticadas e notificadas pelos serviços de saúde. Os dados registrados no Sistema Nacional de Informações Toxicológicas (Sinitox) são falhos, reconhece Afrânio, pois há sub-notificaçã o e referem-se somente às intoxicações agudas - pouco tempo, mas com grande exposição ao produto.
"Temos dois tipos de trabalhador: os de pequena propriedade, mais fragilizados socialmente e que não costumam aparecer nas estatísticas; e os de grandes empresas, que têm um pouco mais de assistência. Em ambos os casos, o uso cotidiano do agrotóxico leva à banalização do risco. É comum não fazerem a ligação entre a doença e a atividade profissional" , lembra Afrânio. Outro detalhe é que muitos deles moram em locais de difícil acesso ou sem estrutura, o que dificulta a fiscalização e a difusão de informação.
Um pouco a cada dia - A dificuldade dos profissionais de saúde em reconhecer a intoxicação por agrotóxico, e a falta de exames precisos que comprovem a exposição é um dos motivos paraque o problema se prolongue na vida do trabalhador. "A maior parte dos médicos não consegue relacionar a exposição à intoxicação. Com isso, os sintomas se complicam a cada dia, pois a exposição continua e o problema se intensifica até chegar a um quadro mais grave", explicou o assessor da Anvisa. Ele lembra o caso do cantor sertanejo Leandro, que trabalhou durante anos na lavoura de tomate no interior de Goiás e morreu vítima do câncer. "Se considerar o tipo de tumor, a atividade que ele realizava e o tipo de agrotóxico a que ele estava exposto, é claro que Leandro é uma possível vítima da intoxicação por agrotóxico. Mas existem poucos estudos conclusivos nessa área, o que não nos permite afirmar que foi o agrotóxico o responsável pela doença", concluiu Gomes.
Nexo causal - Quando esses casos chegam aos tribunais, a discussão é quanto à comprovação do nexo causal, ou seja, a demonstração de que houve um dano experimentado ou uma ação de omissão por parte do empregador ou do fabricante que resultou na intoxicação ou envenenamento do trabalhador. O representante das indústrias de agrotóxicos, Marçal Zuppi, que é gerente de Educação e Treinamento da Associação Nacional de Defesa Vegetal (ANDEF), garante que o setor faz a sua parte: "O agrotóxico, desde que usado adequadamente, orientado por um engenheiro agrônomo e seguindo as recomendações do rótulo, é um produto seguro". Segundo ele, o agrotóxico só fará mal se não forem seguidas as orientações do rótulo e da bula e os intervalos de aplicação do produto na lavoura.
Ele assegura que o setor tem investido em educação e treinamento. "A indústria está preocupada. A ninguém interessa o mau uso ou a intoxicação de pessoas. Esse não é o nosso objetivo. Queremos que o produto seja aplicado corretamente. Para isso, realizamos em média dois treinamentos por semana para formar multiplicadores por todo o país e firmamos parcerias importantes, como no caso do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar)". Os treinamentos já foram realizados em 20 estados, onde o homem do campo teve treinamento. "Se o agricultor está fazendo errado, é porque ainda não aprendeu", diz Marçal.. (ver quadro para mais informações sobre as atividades de educação e treinamento da ANDEF)