Eleita a cidade mais barulhenta do país pela Organização Mundial da Saúde, a capital baiana começa a reagir contra a ditadura dos decibéis
Heliana Frazão, de Salvador
PARTE DA PAISAGEM
Caixas de som numa barraca de praia. A Associação dos Produtores Culturais diz que é o som alto que atrai os turistas
Com seus infatigáveis blocos de Carnaval, trios elétricos e grupos de axé despejando os sucessos do verão (que podem se estender por todas as estações do ano), Salvador sempre se orgulhou de reunir o povo mais festeiro do Brasil. Tanta empolgação acaba de render à capital baiana um título inédito – o de cidade mais barulhenta do Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde – e está incomodando os próprios soteropolitanos. O barulho não se deve apenas aos muitos eventos do calendário oficial da alta estação. De acordo com a Superintendência de Controle do Uso e Ordenamento do Solo do Município (Sucom), órgão com a atribuição de fiscalizar os excessos sonoros na cidade, cerca de 30% dos abusos são cometidos por donos de carros particulares. É possível contar um, dois, três e até mais veículos em frente a cada bar, boteco, barraca de bairro, loja de conveniência e posto de combustível da cidade. Todos com o som no máximo.
Em 2008, a Sucom recebeu 35.074 queixas – quase cem por dia, ou uma a cada 15 minutos. O coordenador do órgão, Cláudio Silva, afirma que seus 36 fiscais têm dificuldade para fazer frente à turba, mas nem por isso ficam parados. No ano passado, foram feitas 1.159 notificações e aplicadas 551 multas, a maior delas no valor de R$ 30 mil. Os fiscais apreenderam 89 equipamentos de som. Além da Prefeitura e do Ministério Público, a guerra dos que querem silêncio contra a turma do barulho tem o apoio do Sindicato dos Donos de Postos de Combustíveis. No ano passado, o órgão promoveu uma campanha educativa para tentar reduzir a incidência das reclamações nos postos. Cartazes com mensagens provocativas foram fixados. Uma delas dizia “Potência se mostra na cama, não aqui”.
Embora tenha havido uma pequena queda nos registros de queixas, o resultado não foi o esperado. Pelo contrário, a briga para abaixar o som já causou a morte de um frentista. Rafael Vasconcelos Santiago, de 23 anos, foi morto a tiros por um desconhecido na madrugada do dia 13 de dezembro, após uma discussão. Segundo testemunhas, um dos seguranças de um posto no bairro de São Rafael, uma região de classe média baixa, pediu ao dono de um carro estacionado em frente à loja de conveniência que diminuísse o volume. Como não foi atendido, o segurança fechou o porta-malas do veículo. Irritado, o proprietário do carro deixou o posto fazendo ameaças. Momentos depois, retornou com duas pistolas, disparando aleatoriamente. Atingido, Rafael morreu ao chegar ao Hospital Geral do Estado. O criminoso ainda não foi identificado.
POTÊNCIA
Equipado com alto-falantes, carro anima uma reunião de jovens. A cada 15 minutos, uma pessoa reclama do som alto na capital baiana
Ney Castro, sócio do posto onde o frentista foi baleado, diz que não consegue conter os abusos dos clientes, apesar dos quatro seguranças contratados e das placas alertando sobre a Lei do Silêncio. “Geralmente, são jovens, que estacionam em frente às lojas de conveniência e fazem a festa. Passam as noites consumindo bebida alcoólica ao lado dos carros”, afirma. “A gente chama a fiscalização, as viaturas de polícia chegam, eles baixam o volume, mas, quando os fiscais se retiram, começa tudo de novo.” Para evitar tragédias como a de dezembro, Ney defende medidas mais severas: a apreensão do carro, da habilitação e até a prisão do proprietário, caso ele se recuse a obedecer a lei.
Para a promotora Cristina Seixas, do Ministério Público Estadual, a legislação municipal é tolerante com os motoristas que despejam toda a potência dos alto-falantes de seu carro. “Falta uma ação mais enérgica por parte do município contra essa prática, prevista na Lei de Crimes Ambientais”, diz Cristina. A Lei no 5.354, de 1998, que determina os índices de utilização sonora na capital baiana, limita em 70 decibéis o nível de ruído entre 7 e 22 horas. Das 22 às 7 horas, o volume deve ficar abaixo dos 60 decibéis. Quando o índice não é respeitado, a lei prevê multas de R$ 480 a R$ 91 mil, além da apreensão do equipamento sonoro.
Além dos órgãos oficiais e do sindicato dos donos de postos, os moradores também se mexem para combater o barulho. Em Cidade Jardim, bairro de classe média alta, uma ação coletiva proibiu na Justiça os ensaios de Carlinhos Brown e seus músicos. Alguns bares também foram forçados a fazer reformas para evitar transtornos à vizinhança. Mas nem sempre a mobilização dá resultado. Moradora do Tororó, a escritora Mabel Veloso, irmã de Caetano e Maria Bethânia, se diz acuada pelo barulho da vizinhança. “Meu bairro é destaque em poluição sonora. Tem noites que não dá para ler nem assistir à televisão”, afirma. “São muitos bares em uma mesma praça, promovendo até uma disputa absurda pelo som mais potente.” Ela diz que costuma recorrer a protetores auriculares.
Do outro lado do front, a Associação dos Produtores Culturais de Salvador quer mais barulho – isso mesmo. Pede que a lei mude para garantir não menos, mas mais decibéis. O argumento é que a cidade atrai turistas justamente por suas festas populares. Curiosamente, é durante o Carnaval, quando os batuques tomam conta de Salvador, que as queixas diminuem. Isso porque a festa ocorre em locais e horários preestabelecidos, respeitando quem quer sossego.
Fora dos quatro dias oficiais da folia, porém, a situação complica. “Já não se encontra paz em Salvador, nem em cidades próximas”, diz Mabel Veloso. “Santo Amaro, por exemplo, há até pouco tempo era uma cidade pacata. Agora, a casa de minha mãe, que está com 101 anos, chega a pulsar com o som dos carros que passam por sua porta”, diz Mabel.
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